Como aprendemos a ser resistência

Como aprendemos a ser resistência

Entretanto, a memória de quem somos é mais complexa do que a mera soma dos eixos que catamos no leito daquele rio. Ela também é formada pelas lembranças dos acontecimentos que acompanharam nosso grupo social, o fundamento comum de nossa diversidade interna.

Jesus, 2017, p.9

Olhando e pensando em como começar me perguntei: “Será que meus pais imaginavam até aonde eu chegaria? Mulher branca, operária, que estudou até o antigo Ginásio, filha de imigrantes italianos e espanhóis. Homem, negro, que estudou até o antigo Ginásio e depois dos 60 anos voltou e fez supletivo do Ensino Médio. Pai negro, filho de uma empregada doméstica, analfabeta e que saiu fugida de Rio Casca, interior de Minas Gerais com sete filhos. Casou-se com um homem mais velho, amigo de seu pai por conta de uma dívida.

Ainda menina, brincava com uma boneca feita de espiga de milho no canto da cozinha perto da sua mãe e escuta a seguinte conversa entre os homens adultos: “Você pode escolher com quem você quer casar.” Neste momento o senhor, amigo do pai da menina, escolhe ela para ser a sua parceira em troca do cancelamento da dívida. Ela iria fazer 12 anos e teve a sua idade aumentada para 14, sendo que relatos diziam que falaram 13 para o tabelião fazer a alteração.

Patricia Pio

“Menina- mulher”, casada sem nem saber o motivo. Mas que foi embora da casa da mãe e constituiu a sua família. Agora a boneca de espiga de milho, tomou forma, chora e come de verdade. Tem deveres de “Mulher-menina”, casa pra cuidar, filhos e marido pra atender sexualmente. Hoje me pergunto: quantos anos teria este homem? Amigo do meu avó, pai da “menina criança”, que casou com objetivos financeiros do patriarcado.

A resposta vem com as suposições, um homem com dinheiro, deveria ter entre os seus 30 o 40 anos, casou-se com uma “Menina-mulher” de 12 pra 13 anos. “Mulher menina”, sai da casa com seus sete filhos e abre mão desta situação de violência sexual e doméstica, como também de alcoolismo. E Acolhida na casa de algumas primas em Belo Horizonte, que também estavam rompendo com o patriarcado e continua a sua caminhada chegando até São Paulo e morando em cortiços da cidade grande.

Como uma “Mãe-mulher”, assume o enredo da sua história, sabendo que receberia os rótulos do patriarcado de “mulher largada” ou “mulher disponível para o sexo”.   A oportunidade de ter vivido com essa mulher e de escutar parte da sua história através das suas palavras foi o começa da construção da minha identidade, como também de compreender sobre a importância da minha ancestralidade.

Mulher, negra, empoderada, analfabeta, divorciada, com filhos e na cidade grande na década de 40, só pode ser enredo de novela. Fazendo me lembrar da Literatura de Cordel sobre Aqualtune, do livro: Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis:

…Uma história como a dela
Deveria ser contada
Em todo livro escolar
Deveria ser lembrada
No teatro e no cinema
Que ela fosse retratada…

Arraes, 2017, p.32

E foi com base nestas narrativas que meu pai dizia: “Estude, estude e estude, o saber não ocupa espaço e ninguém poderá roubar de você.” Dizeres que foram passados de geração em geração, que a fez estudar no antigo MOBRAL. Pois para ela não bastava saber assinar o nome e me lembro como se fosse hoje, ela no quintal utilizando o material de estudo.

Mas foram estas narrativas e tantas outras que contribuíram para que eu pudesse me tornar uma mulher negra.  Ouvia meu pai dizer que: “ Você é uma menina negra, e por  ser menina e negra terá que enfrentar dois leões. Um por ser mulher e outro por ser negra.” Nunca entendia bem, porém um dia, resolvi perguntar ao meu pai como enfrentaria, se vivia na cidade e que no zoológico só tinha um leão e que não poderia entrar no espaço dele? Foi aí que meu pai percebeu a necessidade de ser mais objetivo e explicou que os leões seriam os desafios da vida. Pois eu deveria estudar, pois não atenderia o padrão de beleza da mídia e que também não deveria assumir os postos de faxina e cozinha como imposto pelo racismo estrutural.

Pois minha avó lutou e estudou para sermos melhores que ela, que não poderia estudar menos que ela e nem menos que ele. A meta foi lançada e com o desafio de percorrer um caminho que não teria sido percorrido pelos meus ancestrais. Estava diante de um novo “lugar de fala” não era somente de subir mais um degrau, mas de permanecer nele e passar por situações raciais de uma outra ordem.

São tantas narrativas que permeiam a constituição de uma mulher negra, que aqui optei por um momento da minha história. A luta é diária, o racismo é constante e o empoderamento se faz necessário.

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17 Comentários

  1. Marcella
    4 anos atrás

    Parabéns por partilhar essa história. Muito bom.

    • Julia
      4 anos atrás

      Gostei muito por vc ter contado essa história, ainda mais no meio de tudo isso q está acontecendo atualmente, q com certeza vai inspirar outras mulheres q passam por essa luta diária.

      • Patricia Pio
        4 anos atrás

        Temos muitas narrativas para partilhar, cada mulher em seu contexto…. Gratidão Júlia.

    • Nilton de Souza Bispo
      4 anos atrás

      Essa forte história irá inspirar outras mulheres. Muito bom! Parabéns e obrigado por partilhar.

      • Patricia Pio
        4 anos atrás

        Nilton…. obrigada por contribuir tb com o seu ombro amigo.

    • Patricia Pio
      4 anos atrás

      Marcella, obrigada pelo carinho.

  2. Amanda Ribeiro
    4 anos atrás

    Esse texto foi tão agradável e importante neste momento, só sei agradecer por está postagem!

    • Patricia Pio
      4 anos atrás

      Gratidão pelas suas palavras Amanda….

    • Saraí Peloso
      4 anos atrás

      Quem te conhece sabe da sua fortaleza e determinação! Minha admiração e gratidão por ter tido você em uns dos momentos mais difíceis e de crescimento… Meu respeito pela pessoa querida que se tornou pra mim.
      Parabéns pela sua história e narrativa!
      Partilhar é o que você sempre faz com muita propriedade!!!

  3. Pamela
    4 anos atrás

    Nossa que história de Resiliência

    • Nilton de Souza Bispo
      4 anos atrás

      Muito bom! Obrigado por partilhar conosco.

    • Patricia Pio
      4 anos atrás

      Pamela, vamos escrever tb?

  4. Tania Svarcas
    4 anos atrás

    Muito verdadeira está história,e pensar que você um dia,me deu o Conselho para voltar a estudar,a princípio,pensei ser tarde,mais resolvi seguir seu conselho, e hoje só penso em continuar sempre,nunca é tarde.

    • Patricia Pio
      4 anos atrás

      Tânia, veja só…..o estudo é o melhor caminho….

  5. Priscila
    4 anos atrás

    Nossa.. me emocionei!!! Vi um pouco da historia de minha avó. Mulher, negra, chegou a morar na rua… saiu de sua cidade em MG e veio para SP. Teve seus três filhos, os criou só. Minha avó sempre contou suas histórias pra mim. Ela sempre me deu tanto apoio para que eu subisse esse degrau (não sou negra retinta, mas sou a continuidade dessa mulher. Que história marcante. Obrigada por partilhar conosco .

  6. Maybí de Andrade Pontes
    4 anos atrás

    Gente, recebi este link através de um grupo de amigos! O texto é incrível.
    Tive uma sensação de familiaridade, os relatos me pareciam contatos por uma mulher de minha família. Logo pensei, triste essa sensação, pois isso confirma que não é um caso isolado, e lendo os comentários anteriores, tudo se reafirmou.
    Somos descendentes de rainhas e reis, mas nossa história foi usurpada por um grande período, e agora carregamos essa cicatriz que ainda dói.
    Se tem algo de bom nisso, é que hoje podemos contar nossa própria história, como em uma sessão de terapia. Falar para curar, para resistir.

  7. Elísha
    3 anos atrás

    Nossa que história forte! Cheguei a tapar a boca e os olhos só de imaginar essa cena do patriarca escolhendo a criança como se escolhe uma peça de roupa, um pedaço de carne! O patriarcado capitalista e racista ainda domina as nossas vida e emancipar-se é uma luta constante! Que relato forte.

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